quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Cinema no meio da floresta - Vá e Veja (1985)

Depois de muitos anos sem escrever porra nenhuma neste blog, eu decidi agora, nos 45 minutos do segundo tempo de 2015, redigir esta pretensa resenha.

De forma desinteressada, e até leviana, eu escolhi um filme qual quer para assistir antes de dormir: Vá e Veja (1985), de Elem Klimov. Eu só tinha assistido esse filme até a metade há uns dois anos atrás, e nunca mais retornei a assisti-lo (situação análoga e comum a muitos outros filmes). 
Eu pensava que seria mais um filme para assistir e dar aquela relaxada maluca na mente...Eu estava fodidamente enganado...Vá e Vejá (Idi i Smotri, em Russo) é um filme perturbador, muito diferente dos outros filmes de guerra que são acessiveis aos familiares, por exemplo.


A primeira metade do filme só ajudou a reafirmar as opniões que eu já tinha sobre ele: atuações estranhas e questionavéis que não criavam em mim qual quer tipo de elo com os personagens. Até o momento em que o protagonista, o jovem Florya, descobre que boa parte de seu vilarejo em Belarus foi morta por soldados alemães, o filme já começa a criar a atmosfera de loucura e histeria, mas nada que me perturbou exatamente (talvez eu possa considerar a trilha sonora, que tinha sido eficaz para construir algum terror psicológico). O filme, e boa parte dele, só deixava no ar um estranhamento, algo como: "Que merda que eu estou assistindo?"...A parte mais tensa, que cria enorme ira, ódio naquele que assiste, só ocorre nas cenas finais do filme.


Contexto, discussão

O filme fala, em grosso resumo, de um jovem garoto que se alista em uma das guerrilhas de resistência á ocupação alemã na Bielorrússia, só fica difícil precisar se foi durante o contexto da Operação Barbarossa, em 1941, quando os alemães estavam atacando, ou 1943/1944 quando os alemães estão sendo expulsos da União Soviética e deixando um rastro de destruição por onde passam, por que o filme não tem qual quer interferência narrativa e não há referência cronológica explicita.


O filme se destaca por falar da guerra em outra perspectiva: do soldado de guerrilha, e que posteriormente, se torna testemunha ocular dos grandes massacres empreendidos pelos soldados alemães em vilarejos Bielo-russos. Esse filme não tem como objetivo mostrar os grandes heróis, os soldados Bryan´s, os corajosos e destemidos soldados que lutam em prol da liberdade do mundo livre. Nos parece bastante crível e compreensível que filmes europeus tendam a mostrar o lado da guerra sem as mesmas romantizações existentes nas megas produções hollywoodianas, tendo em mente que os europeus e ianques tiveram diferentes experiências e construiram diferentes tipos de memórias a cerca do conflito, e esse filme é um forte reflexo disto: enquanto que as famílias dos soldados ianques viviam em segurança, distantes da carnificina e do caos da guerra, os europeus viveram a guerra em todos os seus sentidos...Enquanto que os primeiros podiam gozar da segurança de seus lares que se erguiam nas emergentes periferias de classe média; os bielorrusos eram violentados por todo tipo de desventuras em seus vilarejos camponeses tradicionais. Para os primeiros, temos condições mais favoráveis para a emergência e construção de um imaginário de guerra centrado na imagem de heróis. Mas na Europa, na Bielorrúsia ocupada, não se tem espaço para idealismos quando a realidade material deste povo é reduzida a uma campanha de extermínio e massacre de suas populações campesinas.


No decorrer do filme vemos a drástica transformação a qual o corpo e a mente do jovem soldado foram submetidos pelas experiências horrendas a qual foi obrigado a assistir. Depois de pressenciar cenas horriveis como um vilarejo inteiro sendo exterminado e humilhado; ou ver homens, mulheres, velhos e crianças sendo trancafiados em um celeiro para depois serem incinerados vivos para a alegria dos alemães, vemos como que seu corpo se degenera, envelheçe, e é convertido numa fusão de ódio e dor. E aí que eu consegui criar elo com o personagem...É impossível ficar indiferente com aquelas cenas agonizantes no final do filme que parecem não terminar mais...

É assim que ele ficou depois de tudo que ele viu...Nem parecia um jovem de 14 anos, parecia um homem idoso e destruído:


Ainda haveria espaço para se discutir outra coisa: o que levou os soldados alemães a agir daquela maneira? Se a tese da Banalidade do Mal, de Hanna Arent estiver correta, os alemães agiram assim não por que eram, a priori, maus por sua natureza. São muitas as circunstancias que o transformaram em máquinas fascistas animadas pelo ódio; entre elas, a influência com que a ideologia nazista infectou as mentes das pessoas comuns, no momento que a crise no período Entre Guerras deu força para que manifestações extremistas tivessem espaço e adessão na sociedade alemã.
A Banalidade do Mal fala de discusos normativos que tornam legitimo essas práticas horrendas, e estes discursos, quando materializado na prática e mentalidade das pessoas, cria cenas como essa, de soldados se divertindo com a tortura e morte de civis apenas pela suspeita de colaborarem com as guerrilhas anti-germânicas.

A análise deste filme como fonte

Com o advento da Escola de Annales, nos anos 30, e até com algumas manifestações anteriores, se opera a critica da história política, da história dos grandes acontecimentos e das grandes personalidades, a história deslocou seu centro de gravidade para outras discussões que não são aquelas sobre reis e nobres: as estruturas sociais, a história dos costumes, das religiões, de diferentes estruturas econômicas. Os Annales, num entanto, privilegiaram com isso apenas a macro-história e o estudo quantitativo para história, acreditando que índices e estatísticas poderiam dar um quadro geral de um contexto em sua temporalidade (numero de nascimentos, óbitos, casamentos, títulos de propriedade). O estudo e análise de trajetórias individuais (micro-história) pode, num entanto, aprimorar o entendimento que temos de alguns fenômenos que já foram catalogados e estudados pelo estudo quantitativo e macro, bem como, elucidar questões que a macro-analise, por suas próprias limitações não seria capaz de mostrar. 
No caso do filme, em especifico, eu vejo ele como uma fonte  que pode me ajudar ou não a entender, numa escala mais reduzia, o que o discurso historiográfico oficial fala sobre a ocupação alemã em terras eslavas durante a segunda guerra mundial. Enquanto que o estudo meramente quantitativo me falaria de números dos civis bielorrusos, russos, poloneses e ucranianos mortos durante a ocupação, o filme permite que possamos ter uma perspectiva do que realmente estes números significam: morte, dor, aldeias incendiadas e arrasadas pelos contingentes da Wermacht, jovens com seus corpos e espíritos destruídos pela guerra.

Já se inferiu, por exemplo, que este filme seria uma propaganda soviética, uma fonte tendenciosa que inocentaria os crimes soviéticos em prol dos crimes dos alemães...Não nos permitiríamos reduzir as coisas desta forma, e confesso que uma das coisas que me veio a mente ao ver esse filme foi os filmes, documentários e relatos que falam dos estupros em massa cometidos pelos soldados soviéticos. O filme pode sugerir e apontar como surgiu e se desenvolveu todo o ódio que existia entre os soviéticos a cerca dos alemães, mas ela não justifica e não anseia justificar ou tornar inocente os gulags, os estupros em massa, ou o stalinismo.


Vendo este filme também me veio a mente um filme alemão chamado "Stalingrado - A Batalha Final", que mostra a trajetória de 4 soldados alemães durante o cerco á Stalingrado, seu sofrimento diante do frio e da fome. O paralelo que eu fiz entre os dois filmes foi inevitável: "Os mesmos soldados, vistos sob uma perspectiva humana, foram os mesmos que massacraram áquelas populações bielorrusas e ucranianas?". A pergunta fica no ar, e está sujeita, ao meu ver, maiores estudos. O que posso constar é que temos um conflito de fontes com perpectivas bem diversas.


Referências Bibliográficas:

ARENDT, Hanna. Einchmann em Jerusálem: Um Retrato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras.
BLOCH, Marc. Apologia da História. São Paulo: Zahar.
REVEL, Jacques. Jogos de Escalas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales. 2°ed. São Paulo: UNESP, 1992

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