sábado, 3 de setembro de 2016

Hora de Aventura Iconoclasta #post100

Como o centéssimo post (não é bem o centéssimo post, mas foda-se), eu poderia estender meu posicionamento sobre a atual crise política aqui em meu blog, num entanto, creio que por ora eu já esteja feliz com a exposição que eu fiz em meu face.

Hoje apresento a vocês uma lista com os principais paradigmas que o Hora da Aventura quebrou em sua trajetória. O que me impeliu a escrever isso foi os dias que passei refletindo e discutindo sobre este desenho, tanto em meu escuro e solitário quarto quanto no pico cinzento e viscoso na frente de minha universidade.

Em "A Terceira Geração do Cartoon Nertwork: Jake Gumball", eu abordei sobre os novos desenhos da Cartoon Network, fazendo um paralelo com os velhos e buscando erigir uma discussão distante da falácia dos tempos de ouro que, amiúde, despreza os novos desenhos em virtude de um culto e sacralização do passado. Pois bem, eu problematizei este passado santificado e sustentei meu argumento que os desenhos do presente, se não são tão bons quanto os de outrora, são melhores. Um deles, é o Hora da Aventura, responsável por ter destruído tantos lugares comuns nos desenhos focados no público infanto-juvenil. Aquele post está incompleto, não fui muito feliz em alguns pontos, e neste post, de número 100, pretendo analisar mais detalhadamente o desenho Hora de Aventura. Compreendo, em ultima instância, que esta análise acarretará também numa inevitavel construção de uma historiografia dos desenhos animados, já que eu entendo o Hora de Aventura não como um corpo isolado, mas sim, como uma produção em sintonia e relação com um universo mais amplo: as produções infanto-juvenis.

História Multifacetada: perspectivas diferentes

O que eu pude perceber nesses longos anos consumindo desenhos, séries animadas e sitcoms é que os episóidos são sempre construidos a partir de uma única perspectiva, sendo ela centrada a partir de um trio/dupla principal  (Billy/Mandy/Puro Osso; Timmy/Cosmo/Wanda; Vaca/Frango; Pinky/Cérebro), ou quase que totalmente em um único personagem (Dexter, Jimmy Neutron). O que eu quero dizer é que não há nestes desenhos ou na grande maioria dos desenhos, episódios que sejam contados a partir de outras perspectivas que não sejam a dos protagonistas...Episódios que contem outras narrativas ou outras histórias que não estejam no âmbito deste núcleo central...Bem que é verdade, e este é a minha mea culpa, que até existe um episódio de "Laboratório de Dexter", por exemplo, que é centrado na história dos pais dele, mas isso constitui uma exceção ao invés da regra.

Em Hora de Aventura temos vários episódios em que Jake e Finn nem se quer aparecem, e se aparecem, aparecem na condição de coadjuvantes, como no caso dos episódios sobre a grande Empopéia de Limonhope no final da 5°temporada; no caso dos episódios focados no BMO como "BMO Lost" (S05E17) e "Futebol" (S07E5); nos episódios que partem da perspectiva da Princesa Jujuba ou de cidadãos do reino doce aleatórios, como os dois episódios centrados na perspectiva de Root Beer Guy...



Empoderamento feminino 

Apesar dos protagonistas serem do sexo masculino, o desenho dá muito enfase para suas personagens femininas. O desenho explora, principalmente, a relação entre a Princesa Jujuba e a Marceline, que para mim, como para muita gente, foram bem mais do que apenas amigas no passado.


Em Hora da Aventura, as personagens femininas recebem um protagonismo e uma relevância que não podem ser ignorados...Se em muitos desenhos as personagens femininas são renegadas ao segundo plano, na figura de irmãs idiotas ou fúteis, aqui as personagens femininas influenciam diretamente no devir da trama, sendo agentes ativos em alguns dos principais eventos e rupturas deste universo. Temos a princesa Jujuba salvando Finn e Jake mais de uma vez, Betty determinada em salvar Simon; temos a princesa de fogo usurpando o trono de seu tirano pai; a princesa Caroço vagando pela terra de Ooo com sua personalidade um tanto sexista e arrogante; e Marceline com sua personalidade explosiva e impulsiva - em uma palavra, temos personagens femininas fortes, profundas, complexas, e que estão longe de serem meras irmãs que nada contribuem para o desenvolvimento da trama. Ouso supor que, talvez, o desenho seja reflexo de uma mudança pela qual o mundo está passando, onde cada vez mais a mulher está tendo visibilidade e protagonismo em todas as esferas da sociedade, o que explica a mudança de sentido nas representações das personagens femininas, que de personagens passivas, começaram a terem sua relevância cada vez mais exaltada na Industria Cultural.

Antes de Hora da Aventura, os poucos exemplos de personagens femininas empoderadas no mundo do entretenimento infanto-juvenil seriam a Velma de Scooby-Doo (que se destacava por sua inteligência), as Meninas Super-poderosas, as Espiãs Demais, Estelar e Ravena dos Jovens Titans, Mandy do Terriveis Aventuras de Billy e Mandy, a Toph e a Katara de Avatar, a Lenda de Yeng. Mais recentemente, com os desenhos contemporaneos á Hora de Aventura, tivemos á iserção de mais personagens femininas relevantes: a Connie e as Crystal Gems (Steven Universo), Nicole Watson (Gumball); Margareth, CJ e Eileen (Apenas um Show).

É claro que, através de uma análise comparativa, constatamos que o Hora de Aventura não foi o primeiro, e tampouco, será o último desenho a apresentar personagens femininas empoderadas. É de se constatar, num entanto, que sua originalidade reside em apresentar num mesmo desenho, tantas personagens femininas complexas e fortes de uma vez só!



Além do maniqueísmo: a falta de um vilão principal

Em Hora de Aventura temos ausência de uma nuance muito presente em vários desenhos animados: a presença daquele vilão natural. Muitos desenhos observamos o seguinte formato: tem um vilão ou grupo de vilões caricatos e pedantes que aparecem em quase todos os episódios, e seus planos maléficos de foder com o mundo, o universo e tudo mais sempre acabam mal sucedidos graças aos heróis e protagonistas da série...Vemos esse formato em desenhos como Pokemon (a equipe Rocket), Dexter (Mandarke), Meninas Super-poderosas (que apesar de ter vários algozes, um dos principais é o Macaco Louco), Bob Esponja (Plancton), qual quer coisa inspirada em uma HQ genérica de super-heróis, Corrida Maluca (Dick Vigarista e Mudley), Guerreiro Xiaolin (Jack Spicer e Wuya), e entre outros...

Apesar de termos a presença do discurso maniqueísta do vilão e do herói em Hora de Aventura a ponto de ter personagens que se auto intitulam heróis ou vilões, a série trabalha com a possibilidade de mudança destes algozes e dos heróis. Eles não vão ser vilões e algozes estritos para sempre, em verdade, a série busca humanizá-los, como no caso do Rei Gelado, onde temos muitos episódios que ajudam a compreendê-lo melhor: suas mazelas, sua história trágica, e como ele ficou louco daquela maneira.
Mais recentemente, outro personagem que teve seu papel de "vilão" ressignificado foi Rei de Fogo no episódio "Canelita" na sétima temporada.



O que acontecia até então, mesmo se o desenho tivesse vários vilões (Meninas Super-Poderosas, KND - A Turma do Bairro), era que nenhum sofria de fato uma mudança substancial, e só em alguns casos especiais, nós conhecíamos as suas histórias e o que os levou a cometer crimes...O papel do vilão só foi de fato ressignificado no mundo dos desenhos com Coragem, o Cão Covarde, onde temos muitos aparentes vilões que se redimem e vão exercer experiências de vida mais interessantes após o desfecho de alguns episódios; e Avatar - A lenda de Yeng, que eu acho que nem a Hora da Aventura vai conseguir superar em termos de explorar e desenvolver os aparentes "vilões" (vide as transformações que Zuko passou ao longo das 4 temporadas. Uma importante experiência que nos leva a cogitar a fluidez do conceito de "vilania"). Em Avatar, vemos que Zuko não se encaixa no padrão de "vilão estrito" ou do "vilão em si"...Cada vez que conhecemos melhor o Zuko, em episódios a partir de sua perspectiva, vemos que na verdade ele é um rapaz perturbado e animado por um senso de dever.



O lado sombrio de Hora de Aventura

Além da parte lúdica, divertida, e surreal do desenho, Hora da Aventura também tem sua parte obscura e até mesmo tenebrosa. Não é o primeiro desenho a trabalhar com temáticas mais sombrias envolvendo morte, mortos, e coisas afins (vide Coragem ou Billy e Mandy), mas porém, a forma como eles abordam este mundo sombrio não deixa de ser peculiar e interessante. A morte é uma realidade no universo de Hora da Aventura, tanto que alguns personagens acabam morrendo na trama (não me lembro de outros desenhos onde havia personagens que morriam durante a trama, muitas vezes para salvar os outros). Com a morte de alguns entes queridos, os personagens são impelidos a lidarem com a morte á sua maneira, como nós fazemos na vida real. A morte, portanto, ao invés de ser algo oculto e escondido, é trabalhado e pensando como um fenomeno inevitavel que pode ser discutido até mesmo para um público infantil, que cedo ou tarde vai ter que lidar com a morte. Finn é a representação da inocência que vai deseparecendo a medida que ele vai tendo consciência da morte, da sua própria finitude e a finitude de seus entes queridos. Finn amadurece com certas perdas (Jaime, Billy, Joshua que já começa como uma figura paterna postuma na série), assim como todos nós.

Episódio "A Princesa Fantasma" (S03E24), onde podemos ver fantasmas, as histórias de vida destes fantasmas e suas ossadas.

[Alerta de Spoiler] O desenho também trabalha com assombrações, como no episódio onde o Finn descobre que a fantasma que o atormentava era, na verdade, uma reencarnação sua: Shoko. O episódio em si é muito interessante, não só por que aborda sobre espiritos, reencarnação, mas também por se utilizar de um criativo recurso de memória para conhecermos o passado do Reino Doce e seus primórdios (falarei destes logo mais) [Fim do Spoiler].

E não poderia deixar de meditar sobre um dos personagens mais interessantes de toda a série: Lich...Para mim Lich não pode ser pensado como um vilão...Sua condição é muito mais profunda que isso...Ele transcende todos os pretensos vilões que vemos em quase todos os desenhos com suas frases maçantes e idiotas...Creio que os criadores do desenho foram muito felizes ao criar este personagem, ao desenvolver esta entidade que está além do bem ou do mal. Quanto ao fato dele ser maligno ou não em detrimento de suas intenções (aniquilação, morte, fim de toda a luz para reinar o caos ou vazio absoluto) isto está sujeito á discussão; todavia, eu o vejo como uma entidade estritamente niilista, que nada anseia a não ser a destruição. Sem discursos animados por toda a espécie de demagogia, sem frases de efeito superficiais e piegas, Lich é um personagem profundo e fascinante.

Lich falando com Finn: "Você é forte, garoto. Mas eu estou além da força. Eu sou o fim e vim até voce"

Reflexões sobre o mundo onírico

É muito interessante como o desenho representa o subconsciente e o mundo onírico. Em muitos episódios os sonhos se apresentam como eles são de fato: confusos, não-lineares, psicodélicos e non-senses. Até então os sonhos eram representados nos desenhos, com poucas exceções (Coragem, o Cão Covarde), como imaginações que seguiam narrativas lineares, como coisas fáceis de entender e interpretar. Em Hora de Aventura, os sonhos realmente são mostrados de uma perspectiva onírica...Eles não são certinhos e fáceis de entender num primeiro momento e não seguem um encadeamento linear com começo, meio, e fim bem delineados em uma linha reta que nos permite compreender seu sentido latente.

Existe pelo menos uns 3 episódios que abordam o mundo onírico, com destaque para o episódio Rei Verme (S04E18),  que como sugere a imagem a baixo, é um episódio que representa uma experiência muito psicodélica no âmbito do mundo dos sonhos. A realidade neste mundo é mostrada da forma mais distorcida e confusa possivel: lugares e personagens que se transformam e desaparecem sem explicação aparente, comportamento aberrante de seres vivos e de objetos...Nuances essas que aproximam, de fato, essa representação do conteúdo inerente de nossos sonhos, construído com o cimento fornecido pelo nosso inconsciente e nossa experiência com o mundo.


Obs.: Clarêncio, no episódio "Nos Sonhos", também foi feliz ao abordar a temática onírica com fidelidade.

História não-linear e recursos de memória

Como eu estou cursando história neste momento, eu não poderia deixar de ver esta série na perspectiva de um pretenso historiador.

A história deste universo em si valeria um post inteiro...Vamos nos deter, primeiramente, na forma como esta história é interpretada e escrita...Em Hora de Aventura temos uma forma não-linear de contar a história, de modo que informações a cerca do passado deste universo só chegam até nós de forma fragmentada e randômica. Ouso dizer também que a série é feliz em representar a forma como nos relacionamos com o tempo e com a memória e ela também possui recursos muito criativos e psicodélicos para mostrar fragmentos do passado e do futuro...
Nos relacionamos com o tempo e com a história de uma forma fragmentada e não-linear...O passado não vem todo pronto para nós e ele não é, necessariamente, uma linha reta que leva até nós...Estamos, querendo ou não, vivendo o presente, e o passado só chega para nós por fragmentos. A idéia não é buscar a soma total das partes afim de pretender alcançar a verdade em si do passado; mas admitir seu carater fragmentário, na medida em que só nos resta a operação de construção perene deste passado a partir de nossas interpretações...

Deixando um pouco de teoria da história de lado, o próprio contexto histórico do universo de Hora de Aventura é muito bem construído e complexo. Tudo indica que a história se passa em uma Terra (sim, exatamente isso que você leu) pós-apocaliptica, mil anos depois de uma grave guerra nuclear conhecida como "Guerra dos Cogumelos". Adotaremos, a titulo de convenção, a Guerra dos Cogumelos como um marco histórico para o universo da Hora de Aventura e a "Terra de Ooo". Esse episódio em si estabelece uma grande ruptura. Como um divisor de águas, ele delimita o fim de uma era, o fim de nosso passado e presente, e o começo de um passado totalmente diverso. Pouco sabemos o que ocorreu nos mil anos entre o começo da guerra até os dias atuais em que vivem Finn, Jake e cia. Recentemente eu vi um video [video abaixo] que defende a hipótese que esta guerra teria ocorrido no final dos anos 80, durante a guerra fria. O autor do video utiliza como premissa para corroborar seu argumento o fato que toda a tecnologia presente no desenho, que advêm diretamente ou indiretamente do período anterior á guerra, são tecnologias de caráter oitocentista (fitas K7, VHS, Rádios, etc). O video é muito legal também por abordar a conexão e a relação que os atuais habitantes de Ooo tem com as tecnologias antigas, pré-Guerra dos Cogumelos, que nos permitem algumas reflexões interessantes: de que maneira eles se apropriam desta tecnologia; de que forma eles a aperfeiçoaram até ela ganhar novos contornos e signos; e ainda, como é a cultura científica desse novo tempo e quem são os cientistas (Princesa Jujuba, Homem Banana...).


Outra nuance muito interessante são os personagens de Hora de Aventura que são do período anterior á Guerra dos Cogumelos (como Marceline e Rei Gelado) e que ainda estão vivos no presente, mil anos depois...Uma das poucas formas com que conseguimos conhecer o passado é através da memória destes sujeitos, o que os torna verdadeiras "fontes-vivas". Só muito recentemente a historiografia se interessou pela memória "extra-oficial", aquela que não está necessariamente contida nos documentos oficiais ou nos livros de história; e num contexto como deste mundo pós-apocaliptico, onde não possuímos uma "História Oficial" muito bem arquitetada, recursos como a memória pessoal de personagens milenares como Marceline e o Rei Gelado são muito bem vindos.

Referências e influências

Já expus uma análise que considerei razoável e geral sobre o Hora de Aventura. Agora, resta-nos saber quais são as possíveis referências deste desenho. Como uma entidade não-isolada, todo o universo de Hora de Aventura deve se basear em alguma influência. No momento, eu sustento a hipótese de duas influências: a linguagem lúdica de Miyazaki, Dungeons and Dragons, Yellow Submarine.

* Miyazaki, famoso diretor japonês de filmes como "Meu amigo Totoro" e "A Viagem de Chihiro", apresenta um característico estilo mágico, criativo e viajante. Ao assistir Meu amigo Totoro, é muito difícil não associar certas nuances deste desenho ao Hora de Aventura. Um mundo cheio de magia e imaginação, animais voadores...Uma das coisas que mais me chamaram a atenção neste desenho, em particular, foi o "ônibus gato voador mágico", que de alguma forma me lembra o Jake :3 (o Jake pode moldar seu corpo a quase qual quer forma que lhe convenha...Um gato que tem a forma de um onibus me lembra um pouco o Jake).


* O RPG também possui uma forte influência no desenho, principalmente pelo fato dos criadores serem fãs de Dungeons and Dragons, o que explica, talvez, a construção complexa dos personagens, além de todo o fundo aventuresco e a variedade infindável de ambientes: cavernas, puzzles, labirintos, castelos amaldiçoados e coisas deste gênero.

* Talvez o Yellow Submarine tenha algo haver com o Hora de Aventura, já que estamos falando de uma animação muito doida e psicodélica, cheia de coisas mágicas e psicodélicas =)



Por fim, por se arriscar a abordar temas complexos e até mesmo filosóficos, envolvendo física quântica, existencialismo, morte, sonhos, e etc; devo presumir que as influências são muito vastas e não caberiam aqui. Influencias que viriam desde da cultura pop até de nosso conhecimento que dispomos com a divulgação científica.

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